LÓGICA & DIALÉTICA À LUZ DO DESENVOLVIMENTO ATUAL DA CIÊNCIA
A recente publicação do livro Lógica Marxista e Ciências Modernas, pela editora Instituto José Luís e Rosa Sundermann, preenche finalmente, após mais de 30 anos, uma das graves lacunas que havia no conjunto das obras de Nahuel Moreno disponíveis no Brasil em língua portuguesa.
Escrito originalmente como prólogo ao livro Introdução à Lógica Marxista, de George Novack, o trabalho de Moreno teve escassa divulgação no Brasil, sendo difícil de encontrar em seu formato original: uma impressão bastante modesta realizada no México.
Tanto pela pequena divulgação do texto quanto por seu conteúdo inegavelmente difícil, esse trabalho encontrava-se até então marginalizado. Pouco lido e pouco utilizado pelos militantes, não pôde revelar até o momento todo o potencial que contém e a riqueza e originalidade das contribuições de seu autor.
Esperamos que sua publicação em português possa motivar os militantes do PSTU a aprofundar seus conhecimentos
Neste artigo não pretendemos discutir os pontos de vista de Moreno sobre lógica e teoria do conhecimento, nem criticá-los. Essa tarefa exigiria espaço e dedicação muito maiores, pois seria necessário considerar também a teoria do conhecimento de Piaget, a Epistemologia Genética, seus fundamentos, métodos e resultados. Das contribuições de Moreno — que, repetimos, são importantíssimas e originais — tomaremos apenas aquelas que dizem respeito diretamente aos propósitos desse artigo: elucidar a relação atual entre a lógica e a dialética, em particular expor as conseqüências epistemológicas mais importantes resultantes do advento da lógica paraconsistente.
Antes, porém, de entrar no tema que nos interessa, faremos uma pequena digressão para desfazer alguns mal entendidos, muitos dos quais, diga-se de passagem, têm origem no livro de George Novack citado acima. A crítica desse trabalho, contudo, não será feita aqui. Por ora, importa apenas devolver à lógica clássica o seu devido lugar entre as grandes aquisições do pensamento humano, para que em seguida possamos analisar de que maneira ela foi de fato superada.
A lógica clássica
Como todos os ramos da ciência, a lógica possui atualmente tantas vertentes e aplicações que defini-la com poucas palavras é quase impossível: sempre acabamos negligenciando alguns aspectos ou exagerando a dimensão de outros. Entretanto, se fizermos uma separação mais ou menos grosseira entre suas principais correntes, e se nos restringirmos ao que se denomina lógica clássica, talvez possamos defini-la em termos genéricos, deixando os detalhes para outra ocasião.
A lógica clássica, ou formal, é, basicamente, um conjunto de técnicas matemáticas destinadas a verificar a coerência formal de conhecimentos em estado de acabamento teórico, isto é, conhecimentos que, de modo geral, estão já contidos no interior de teorias científicas estruturadas. Expliquemos isso melhor.
Os conhecimentos humanos, em determinado grau de seu desenvolvimento, adquirem a forma de teorias científicas. Tais conhecimentos e a própria teoria construída com eles passam permanentemente por uma avaliação social global, tanto teórica quanto prática. Os conhecimentos em si, por exemplo, a metalurgia, a geração e a distribuição de energia elétrica, as telecomunicações, são objeto de uma grande variedade de teorias científicas e de ciências. A produção de energia elétrica, como tal, não será jamais objeto da lógica. Da mesma forma, a lógica não se interessará em saber como as ondas eletromagnéticas são transformadas em corrente elétrica e depois em som pelos nossos aparelhos de rádio. Entretanto, em certo sentido, a lógica se interessa muito em saber como o eletromagnetismo surgiu, quais modificações estruturais esse novo ramo do conhecimento trouxe para a física, e de que maneira os pressupostos dessa ciência foram, a partir de então, modificados.
Resumindo: as ondas de rádio, os fenômenos luminosos, a propagação das ondas eletromagnéticas são fenômenos estudados por físicos, engenheiros e matemáticos. O estudo desses fenômenos constitui um ramo particular do conhecimento científico denominado eletromagnetismo. O eletromagnetismo é um ramo da física, ciência que, como sabemos, estuda os fenômenos da natureza e suas leis.
Pois bem. Insistamos no seguinte: a lógica não se interessa propriamente pelo que são os fenômenos eletromagnéticos (sua natureza “íntima”), porque esses fenômenos são objetos concretos, são coisas reais, estudados por ciências específicas. A lógica entrará em ação apenas quando nossos conhecimentos sobre esses fenômenos começarem a ser estruturados como teorias científicas. Nesse momento, ela não questionará os conhecimentos em si (o que é a luz?), mas a teoria científica que se erguerá sobre eles.
Os fenômenos reais não são, portanto, o objeto da lógica. Vamos repetir pela última vez: os fenômenos eletromagnéticos são estudados pelos físicos. Sua utilização pela indústria é estudada pelos engenheiros. A lógica não se interessa por nada disso. A lógica se interessará apenas pela estruturação dos conceitos e sobre o modo como as conclusões são obtidas deles. A lógica questionará e estudará, portanto, a estruturação racional dos conhecimentos sobre o eletromagnetismo quando eles estiverem num estado de acabamento teórico, como teoria científica. Nesse momento, os fenômenos estarão descritos por meio de conceitos, subordinados a leis descritas matematicamente. Então, a lógica investigará a estrutura da teoria científica do eletromagnetismo, centralmente para saber se dessa teoria, do modo como foi construída, não se poderiam deduzir, eventualmente, conclusões equivocadas.
Neste ponto, alguém poderá dizer:
— Ora, mas desse ponto de vista a lógica e a teoria do conhecimento seriam praticamente a mesma coisa, pois tudo o que se disse anteriormente sobre o “interesse” da lógica poderia ser dito sobre a epistemologia.
De fato. A lógica e a epistemologia, ao menos em suas formas não-especulativas, têm muita coisa em comum, da mesma maneira que a física e a matemática muitas vezes se confundem, tornam-se temporariamente indiscerníveis, sendo a separação entre elas puramente convencional.
Voltando ao assunto: se o objeto da lógica não são os fenômenos reais e sim as teorias elaboradas sobre eles, então devemos concluir que o objeto da lógica são conceitos e leis científicas, porque as teorias científicas são compostas basicamente por conceitos e leis. É quase isso. Como dissemos, a preocupação central da lógica é descobrir se, em função do modo como certa teoria foi estruturada, não seria talvez possível que alguém chegasse a uma conclusão falsa a partir dela. Noutras palavras: o objeto central da lógica é a coerência das teorias científicas. Mais tarde veremos que nem todas as teorias científicas prestam-se a uma análise lógica, apenas algumas têm esse privilégio. As ciências humanas, por exemplo, de modo geral, não podem ser descritas ou avaliadas logicamente.
Como dissemos, a investigação lógica começa assim que surge uma nova teoria científica. Como toda teoria afirma algo de alguma coisa, isto é, como toda teoria pretende nos convencer de algo, ou nos levar a concluir algo, o objeto da lógica são os argumentos dessas teorias. A lógica trabalha, pois, com argumentos.
E o que são argumentos?
Um argumento é uma tentativa de alguém de nos convencer de algo (falando ou escrevendo). Quando alguém quer nos convencer de alguma coisa, lança mão de argumentos. O objeto da lógica clássica, ou formal, consiste no estudo desse tipo de argumentos. É claro que podemos pensar em muitos tipos de argumentos como exemplo. Algum dia alguém explicará por que, em geral, os argumentos usados em textos introdutórios de lógica são tão bobos. Seja como for, é óbvio que fora dos textos didáticos os lógicos não ficam apenas estudando coisas como o clássico: “Se todos os homens são mortais e Sócrates é um homem, então Sócrates é mortal”. Esses exemplos repisados há dois mil anos não dão ao iniciante, obviamente, a menor idéia do que possam ser os argumentos realmente questionáveis por uma análise lógica. É evidente que no mundo real a pesquisa não se deterá sobre esse tipo de questões. Como dissemos, a lógica estuda, em geral, a coerência das teorias científicas. Na prática, os lógicos são, normalmente, também matemáticos, e procuram sempre criar inovações teóricas em teorias já constituídas ou descobrir possibilidades de erro em teorias novas.
De que são feitos os argumentos?
No âmbito da lógica clássica, os argumentos são feitos de proposições, quantificadores e conectivos lógicos. Veremos apenas o que significam as proposições, pois os quantificadores e os conectivos servem para encadear as proposições e dar a bendita forma aos argumentos. A propósito, o nome lógica formal vem daí: ela investiga a forma, a estrutura da argumentação, e não seu conteúdo.[1]
Vejamos, então, o que é uma proposição. Uma proposição é um tipo particular de afirmação. Uma afirmação, como sabemos, é uma oração declarativa contendo sujeito, verbo e predicado: uma afirmação atribui um predicado (qualidade, atributo) a um determinado sujeito através de um verbo. Exemplo de afirmação: o sol é amarelo. Nessa afirmação há um sujeito (o sol), um verbo (o verbo ser) e um predicado (ser amarelo). As proposições, objetos que constituem os argumentos, são tipos particulares de afirmações. Mais precisamente: as proposições são afirmações das quais podemos dizer, em determinado contexto, de maneira inequívoca, que são verdadeiras ou falsas (não podendo ser verdadeiras e falsas simultaneamente). Portanto, o exemplo de proposição que demos anteriormente é (num contexto amplo) verdadeiro, pois o sol é de fato amarelo (para a maioria dos mortais, ao menos).
Resumindo: proposições são afirmações que podem ser classificadas como verdadeiras ou falsas em determinado contexto.
E os tais princípios da lógica clássica?
Agora que sabemos mais ou menos em que a lógica clássica consiste podemos discutir os seus fundamentos, em geral mal compreendidos. É comum que os princípios da lógica sejam interpretados como leis que, em última análise, significariam a igualdade entre seres ou objetos. Assim, a lei ou o princípio de identidade é traduzido por Novack em seu livro como uma igualdade matemática (A = A), quando, na realidade, significa coisa completamente diferente[2]. Essa confusão teve início há uns dois mil anos, quando a lógica foi misturada com as concepções que os lógicos tinham dela. Ao não haver a devida dissociação entre o âmbito da lógica e o da epistemologia daquela época, muitos filósofos e historiadores foram levados a crer que a lógica fosse o mesmo que a ontologia[3] de Aristóteles. Por inércia, a confusão reinou até o início do século XX. Ora, tudo o que Aristóteles possa ter dito sobre a significação de suas formulações lógicas pertence ao domínio da interpretação dos resultados, que não deve ser confundida com os resultados em si mesmos. Vejamos qual é a significação propriamente lógica desses princípios.
O primeiro deles é o chamado Princípio de Identidade ou Lei da Identidade. Segundo a interpretação intuitiva usual, esse princípio teria a função de traduzir o fato incontestável de que uma dada coisa tende a permanecer igual a si mesma, ao menos sob determinadas condições. Assim, segundo essa interpretação, a lei de identidade serviria para que nos convencêssemos de que, por exemplo, uma xícara permanecerá sendo uma xícara, ao menos até que seja quebrada ou transformada em outra coisa. Essa é a interpretação vulgar da lei da identidade — interpretação que conduz a uma série de confusões e preconceitos. No terreno da lógica esse princípio pretende significar outra coisa. Já sabemos que os fenômenos reais não constituem o objeto da lógica. Vimos que a lógica lida com argumentos, que são feitos de proposições. Portanto, parece mais ou menos razoável supor que a lei da identidade deva se referir, na verdade, às proposições, e não ao conteúdo concreto delas. Assim, em vez de dizer que uma xícara é sempre igual a ela mesma, deveríamos dizer que uma dada afirmação sobre a xícara, em determinado contexto bem definido, significará sempre a mesma coisa, não podendo o sentido dessa afirmação mudar arbitrariamente se o contexto e as condições sob as quais a afirmação foi feita permanecerem os mesmos. Se isso acontecesse, não poderíamos determinar se a afirmação é verdadeira ou falsa, e não se trataria mais de uma proposição, logo, teríamos saído do âmbito da lógica. O leitor deve observar que ao fazer essa restrição sobre o sentido das afirmações, exigindo que eles permaneçam constantes, não estamos limitando de modo algum o alcance do pensamento ou da análise lógica, mas simplesmente definindo um critério de inteligibilidade, isto é, exigindo o mínimo grau de coerência necessário para que as afirmações e os argumentos possam ser de fato analisados.
O segundo princípio, ou lei, é a Lei da não-contradição. Há várias formas de enunciá-la. A mais comum é a seguinte: dadas duas proposições, se uma delas for a negação da outra, uma das duas é falsa. Ao introduzir essa lei nos fundamentos da lógica, estamos excluindo as contradições de seu interior. Exemplo de contradição: o sol é amarelo e não é amarelo. Ou ainda: o número π é racional e irracional. Da mesma forma que no caso da lei da identidade, deveríamos supor que a lei da não-contradição refere-se apenas às proposições, e somente a elas, pois toda suposição a respeito da existência ou não de contradições no mundo real escapa do âmbito da lógica. Entretanto, essa delimitação no sentido, na significação da lei, esbarra em uma séria dificuldade: o princípio da não-contradição introduz o domínio das valorações[4] nos fundamentos da lógica, isto é, ao admitir a não-contradição, estamos entrando no terreno das interpretações, do falso e do verdadeiro, ou seja, estamos aceitando de antemão que o conteúdo de alguma coisa, a própria realidade, deva fazer parte dos fundamentos da lógica! E isso contradiz, em certo sentido, o que dissemos anteriormente sobre o objeto da lógica. Se a lógica não lida com o conteúdo das teorias científicas, mas sim apenas com sua estrutura, com sua forma, por que introduzir em seus fundamentos distinções que só dizem respeito ao mundo real?
A terceira e última lei da lógica clássica diz o seguinte: dadas duas proposições, se uma delas for a negação da outra, apenas uma das duas é verdadeira. Essa lei é um complemento da lei anterior. Resulta daí que uma proposição é verdadeira ou falsa, não havendo uma terceira possibilidade. Note-se que aqui também o domínio das valorações foi tomado como relevante e indispensável. Toda a lógica deveria, portanto, assentar-se sobre isto: verdadeiro ou falso, nada mais. A propósito, o nome da última lei vem dessa restrição sobre o valor-verdade de uma proposição. Como um possível terceiro valor-verdade fica excluído por lei, temos: Lei do terceiro excluído.
Limites da lógica clássica
De tudo o que vimos até aqui podemos concluir três coisas: a lógica é muito mais simples do que supõe o senso comum, seus objetivos são muito mais modestos, e, aparentemente, há alguma coisa errada com seus fundamentos. Entretanto, essas conclusões não nos autorizam a supor que o objeto da lógica sejam afirmações do tipo “A = A”, “uma coisa não pode ser diferente dela mesma”, ou, pior, indagações do gênero “2 + 2 = 4 (!?)”[5] O fato de que os princípios da lógica sejam simples não quer dizer que ela não sirva para nada, ou que sirva apenas para a matemática. A lógica clássica permanece sendo a fonte de inúmeros progressos científicos, pois constitui uma ferramenta poderosíssima do pensamento, desde que a conheçamos bem e saibamos aplicá-la. Alguém colocaria em dúvida o alcance e o poder da mecânica clássica por serem as três leis de Newton, ao menos em certo sentido, banais? A lei da inércia, a lei da ação e reação e o chamado princípio fundamental da dinâmica nos parecem terrivelmente simples, e com eles os homens foram capazes de enviar missões tripuladas ao espaço. Por que acreditar que a simplicidade dos princípios da lógica pudesse transformá-la em “fonte de prejuízos lógicos”[6]? Parte dessa suposição deve-se a simples preconceitos. Outra parte deve-se a um erro comum: tentar aplicar a lógica onde ela não se aplica. Uma pessoa que dissesse que um caminhão não serve para nada porque não é capaz de atravessar o Oceano Atlântico estaria sendo, no mínimo, injusta com o caminhão. Para atravessar o oceano convém usar um navio, ou um avião, ou um submarino… Cada ferramenta tem a sua finalidade e seu limite de aplicação. Dentro de seus limites e de sua finalidade, a lógica clássica continua sendo essencial, o mesmo que ocorre com a mecânica newtoniana.
A limitação da lógica clássica, que existe de fato, não deve ser deduzida da tentativa de aplicá-la a domínios que não lhe dizem respeito. As limitações reais da lógica não foram constatadas na realidade, no mundo real, mas em seu próprio interior, a começar pelos seus fundamentos, que, como vimos, são meio problemáticos. A pesquisa dessas limitações, a tentativa de superá-las, deu origem às lógicas não-clássicas, dentre as quais a mais importante, ao menos do ponto de vista que nos interessa aqui, é a lógica paraconsistente. Antes de discuti-la, vejamos mais de perto a questão das relações entre a lógica clássica e as ciências humanas.
Lógica e ciências humanas
As ciências humanas são normalmente compostas por teorias não-matemáticas (salvo as sociais aplicadas e alguns ramos da lingüística). Uma teoria não-matemática invariavelmente vai se referir aos objetos reais, concretos, tais como eles aparecem no mundo real, com pouca ou nenhuma representação conceitual autônoma (a representação não se dissocia por completo do objeto representado). Em tais casos, a lógica terá pouca ou nenhuma utilidade, pois o conteúdo das discussões estará relacionado a fenômenos cujas leis não têm o mesmo caráter que as leis dos fenômenos naturais, donde a dificuldade de extrair deles um aparato conceitual autônomo, que seria então o objeto da análise lógica. É por isso que a primeira tarefa do marxismo consiste precisamente em erradicar preconceitos teóricos, supostas “leis eternas”, do domínio da análise sociológica e histórica. Marx e Engels dizem, na Ideologia Alemã:
Ali onde termina a especulação, na vida real, começa, portanto, a ciência real, positiva, a representação [teórica, conceitual] da atividade prática, do desenvolvimento prático [material] dos homens. Cessam as frases sobre a consciência, o saber real deve substituí-las. Com a representação da realidade [do mundo real tal como ele de fato se apresenta], a filosofia autônoma perde o seu meio de existência. Em seu lugar pode, quando muito, surgir um resumo dos resultados mais gerais que é possível abstrair da consideração do desenvolvimento histórico. Essas abstrações não têm, separadas da história real, o menor valor. Só podem servir para facilitar a ordenação do material histórico, para indicar a seqüência de cada um dos seus estratos. Mas não dão, de modo nenhum, como a filosofia, uma receita ou um esquema segundo o qual as épocas históricas possam ser ajeitadas ou ajustadas. A dificuldade começa, pelo contrário, precisamente quando passamos da consideração e ordenação do material, seja de uma época passada seja do presente, à representação real. A eliminação dessas dificuldades está condicionada por premissas que de modo nenhum podem ser dadas aqui, e que só resultarão claras do estudo do processo real da vida e da ação dos indivíduos de cada época.[7]
Ao se referir a tais premissas, os pressupostos da investigação materialista da história, Marx e Engels dizem:
Os pressupostos de que partimos não são arbitrários, nem constituem qualquer classe de dogmas, ao contrário, são premissas reais, das quais só se pode fazer abstração na imaginação. Esses pressupostos são os indivíduos reais, a sua ação e as suas condições materiais de vida, tanto as que encontraram estabelecidas como aquelas que produziram pela sua própria ação. Essas premissas são, portanto, verificáveis de um modo puramente empírico.[8]
Esses princípios da análise sociológica e histórica, a investigação da realidade material dos indivíduos sem qualquer especulação, a análise dos fatos tais como eles se apresentam sem receitas absolutas ou fórmulas, contrastam notavelmente com a maneira de proceder das ciências naturais e exatas. Nelas, o investigador estuda os fenômenos munido de um aparato teórico-conceitual que lhe parece invariável e totalmente divorciado do mundo real. Essa diferença no modo de proceder é acentuada pela ideologia que se produz nas mentes dos cientistas decorrente do impacto causado pelo modo de exposição dos conhecimentos adotado pelas ciências exatas.[9] Newton descreveu a totalidade dos movimentos do mundo deduzindo-os de três premissas. O homem comum, ao se deparar com esse feito extraordinário, tem a impressão de que a natureza e seus movimentos derivam dessas leis! Isso conduz à suposição, que se transforma em ideologia, de que seria possível explicar os fenômenos sociais da mesma maneira, deduzindo-os de leis eternas, imutáveis. Marx diz: a ciência começa precisamente onde esse tipo de especulação acaba. Ora, isso demonstra que a análise lógica não se adapta aos fenômenos sociais, pois a representação conceitual deles, a sua realidade no plano teórico, deve se manter o mais próximo possível dos acontecimentos tais como eles verdadeiramente são. A análise lógica, ao contrário, exige uma separação completa entre a representação conceitual e o mundo real, de tal maneira que o conteúdo seja abolido, em benefício da forma, da estrutura da teoria. Quando isso acontece, opera-se a transformação decisiva: o critério de verdade se desloca do mundo real para o interior da teoria. Assim, por exemplo, numa teoria matemática sobre os fenômenos eletromagnéticos qualquer afirmação pode ser qualificada como verdadeira ou falsa com os critérios de verdade (matemáticos) da própria teoria, sem qualquer apelo ao mundo real. No caso das ciências humanas acontece o contrário: a veracidade das afirmações deverá ser constatada na realidade, na prática (daí a práxis do marxismo). Por isso, em tais casos, uma análise lógica seria inútil, pois o objeto da lógica é a coerência formal da teoria, não sua aplicabilidade.
Entretanto, se interrompêssemos o raciocínio aqui, estaríamos ocultando parte da verdade. Num determinado sentido específico, bem diferente do sentido dado pelo senso comum, a lógica clássica é, de fato, limitada. Como vimos, a pesquisa dessas limitações deu origem às lógicas não-clássicas. Agora que sabemos um pouco mais a respeito das relações entre a lógica tradicional e as ciências humanas, vejamos rapidamente o precursor das lógicas não-clássicas e o seu sistema filosófico: Hegel e a dialética.
A dialética em Hegel
A obra de Hegel é considerada pelos marxistas como o ponto culminante do trabalho intelectual, científico e filosófico da época das revoluções burguesas. George Novack diz o seguinte a esse respeito:
A revolução na lógica feita por Hegel é parte desse colossal movimento revolucionário que transformou o mundo ocidental entre os séculos XVI e XIX e culminou com a substituição de todos os aspectos da vida social do feudalismo, e de outras formas e forças pré-capitalistas, pelo sistema burguês.[10]
O pensamento de Hegel e, especialmente, seu método dialético representam a consumação da filosofia clássica alemã e da grande filosofia grega da antiguidade. Foram a conseqüência teórica do progresso filosófico de quatro séculos da civilização ocidental. (...) Seu trabalho abrange e resume em forma teórica concisa os resultados de séculos de trabalho intelectual dos maiores pensadores.[11]
Não discutiremos aqui os detalhes sobre o sistema de Hegel, que é, aliás, minuciosamente descrito por Novack em seu livro. Para os nossos propósitos, é suficiente assinalar que Hegel foi um dos últimos pensadores a reunir a quase totalidade dos conhecimentos de sua época. É um fato que, ao menos no terreno da filosofia, das ciências humanas e da teoria do conhecimento, a dialética de Hegel foi talvez a primeira tentativa sistemática, séria, global, de substituir a filosofia clássica e tudo aquilo que se encontrava assentado na lógica de Aristóteles. Mas é também um fato que em Hegel a dialética se transforma em algo absoluto, uma espécie de chave-mestra capaz de explicar todos os fenômenos do mundo real. Ao considerar a dialética como um método de alcance universal, Hegel cedeu à tentação de sua época: encerrar toda a realidade no interior de seu sistema. A tal ponto que, para ele, a realidade derivava do sistema, e não o contrário. Atualmente, o conhecimento científico se desenvolveu tanto que ninguém acredita mais na possibilidade de construir uma nova filosofia da natureza, um sistema filosófico supracientífico em que todos os conhecimentos estariam contidos e convivendo
Apesar do caráter especulativo e idealista de muitas de suas conclusões, havia no sistema de Hegel, segundo o que nos dizem os clássicos, um substrato racional, seu método, a dialética. Esse método, que ao menos em certo nível exigia a crítica e a superação da lógica clássica, o legado de dois mil anos do mundo antigo, foi aproveitado por Marx e Engels e encontra-se na base da dialética materialista. Bem, acontece, porém, que tudo isso são simples frases. Nem Marx e nem Engels puderam se dedicar a uma exposição sistemática sobre o seu “método lógico”. Engels escreveu três trabalhos sobre o assunto, o Anti-Dühring, Dialética da Natureza e o Ludwig Feuerbach..., mas nesses trabalhos encontramos, em geral, aplicações do “método dialético” a domínios específicos do conhecimento, e não o método propriamente dito. Marx disse certa vez que gostaria de ter a ocasião de resumir em três folhas de papel o que havia de racional no sistema de Hegel, e que essa teria sido uma das grandes contribuições de sua vida. Infelizmente, isso não aconteceu. Tudo o que sabemos sobre o método dialético são simples frases, uma espécie de “princípios gerais” que serviriam para nortear a investigação científica. Nesse sentido, aparentemente, o que havia de racional no sistema de Hegel era uma espécie de epistemologia; ou seja, a dialética de Hegel, em sua forma racional, como método lógico, é uma teoria do conhecimento, nada mais. Ora, mas uma teoria do conhecimento é algo radicalmente distinto de um método universal. Essa distinção nos parece importante porque, a nosso ver, os marxistas nem sempre vêem as coisas assim. Ainda hoje há muita gente que acredita que a dialética seja uma espécie de conhecimento ou de método universal capaz de explicar tudo, interpretar todos os tipos de fenômenos… Em resumo: a dialética seria a própria encarnação conceitual da racionalidade! O problema, entretanto, é que tais suposições são extremamente perigosas e, em geral, nocivas. Admitir a existência de um conhecimento universal supracientífico, que assumiria a forma de um método, é, em última análise, uma atitude anticientífica.[13]
Para terminar essas observações, assinalemos de passagem que Hegel sabia que a lógica clássica possuía limitações intrínsecas, estava ciente de que em particular a não-contradição limitava drasticamente qualquer epistemologia que viesse a considerar a lógica como ferramenta essencial, pois, para Hegel, o mundo não apenas está permeado de contradições, como as contradições estão na base do movimento de todas as coisas. Mas essa visão, uma vez que se limitava ao terreno puramente especulativo, filosófico, embora fosse sem dúvida genial e constitua um marco histórico, não era ainda uma revolução no interior da lógica. Hegel desenvolve um sistema filosófico com uma lógica distinta da clássica, revogando os princípios dela, porém no plano da filosofia. Ou seja, o que Hegel fez foi antecipar filosoficamente os progressos e as revoluções que ocorreriam na lógica cem anos depois! Atualmente, podemos dizer que de fato a lógica clássica, tal como fora concebida por Aristóteles, foi superada. Mas essa superação não ocorreu no terreno especulativo da filosofia idealista, e sim no árido terreno da matemática. Devemos a realização desse trabalho ao matemático brasileiro Newton da Costa, criador da lógica paraconsistente.
Newton da Costa
(...) o meu sonho, aliás sob certo aspecto eu sou meio frustrado, porque o meu grande sonho, muito maior do que fazer lógica e matemática, dadas as minhas concepções, que eu tinha, pessoais minhas, a respeito de compromisso com o contorno, tudo isso, era fazer uma revolução na América Latina, da Argentina ao México. Tanto que no México tem um grupo de filósofos lá, inclusive uma moça que se chama Lurdes Vladilia, eles me chamam “o Segundo Bolívar”, só que aquele Bolívar fez alguma coisa, eu não consegui fazer nada. (Risos.) Entre outras diferenças, essa. O meu sonho era isso: eu gostaria de, veja que inocência, como é que uma pessoa pode ser tão tonta, eu queria igualdade para todo mundo, queria fazer aqui um socialismo.[14]
Newton da Costa nasceu em Curitiba, em 16 de setembro de 1929. Seu interesse pela lógica e pela matemática começou cedo, e foi fortemente influenciado pelo ambiente familiar. Por intermédio dos pais e de um tio que era professor de filosofia, entre os 15 e os 20 anos conhecia praticamente toda a obra filosófica de autores como Descartes, Quine, Bertrand Russell, Poincaré, Carnap, entre outros. Formou-se em engenharia civil e posteriormente em matemática pela Universidade Federal do Paraná. Aos 30 anos tornou-se livre-docente. Em 1964, então com 35 anos, defendeu uma tese para um concurso de cátedra, na mesma instituição, denominada Sistemas Formais Inconsistentes. A partir daí, graças à divulgação internacional de seu trabalho, tornou-se um dos maiores nomes da lógica de todo o mundo. Citaremos a seguir alguns de seus feitos, apenas para ilustrar a importância que seus trabalhos adquiriram:
Na década de 50, publicou trabalhos que marcariam os rumos de algumas de suas investigações em lógica, notadamente no sentido das lógicas paraconsistentes… Trabalhou com o matemático francês Marcel Guillaume, da Universidade de Clermont-Ferrand, e orientou um pequeno grupo de professores e alunos que se interessavam por matemática, em especial pela lógica. Desse grupo, pontificou Ayda I. Arruda, que foi uma destacada pesquisadora no campo da lógica paraconsistente.
Na década de 60, foi professor visitante no Instituto Tecnológico de Aeronáutica, e do Instituto de Pesquisas Matemáticas da Universidade de São Paulo, transferindo-se para o Instituto de Matemática e Estatística desta mesma universidade, em 1970. No período 1968 – 1969, lecionou no recém criado IMECC da Unicamp e no Departamento de Filosofia desta universidade em 1982 e 1985. Praticamente todos os primeiros pesquisadores brasileiros em lógica foram seus orientados, ou receberam sua influência direta. (...).
No exterior, o Prof. da Costa foi conferencista, professor, professor visitante, “visiting scholar” ou pesquisador de um grande número de instituições, como por exemplo nas universidades de Paris, Montpellier, Varsóvia, Munique, Califórnia, Stanford, Buenos Aires, Católica do Chile, Nacional Autônoma do México, Lima, Santiago, Colômbia, Venezuela, Sidney, Melbourne, Turin, Florença, Milão, Nova Lisboa e Nacional do Uruguai, dentre outras. Além de orientar várias teses também no exterior, teve seus trabalhos traduzidos para o italiano, para o búlgaro, o russo e o chinês. Aliás, seus trabalhos em lógica paraconsistente estão sendo totalmente traduzidos para o chinês. Conhecem-se mais de 1000 citações de seus trabalhos; vários textos especializados dizem respeito de modo direto à sua obra, como o volume 43 (1989) de Studia Logica, inteiramente dedicado à lógica paraconsistente, ou o volume 94 das Lecture Notes in Pure and Applied Mathematics, editado pela Marcel Dekker em sua homenagem. Recentemente, o volume 7 do Journal of Non-Classical Logic (1990) foi também inteiramente dedicado às lógicas paraconsistentes. Na Bulgária foi criada, por iniciativa do Professor H. Smolenov, a Associação Internacional de Lógica Paraconsistente, cujo presidente é o Prof. da Costa e cujo presidente de honra é G. H. von Wright. Em 1989, foi indicado para membro titular do Institut International de Philosophie, de Paris; sua indicação foi acatada por unanimidade, fato este nunca antes ocorrido na história do Institut. Tornou-se assim o primeiro filósofo brasileiro a fazer parte desta renomada instituição. Em 1993, o Prof. da Costa recebeu o Prêmio Moinho Santista. (...).
Os trabalhos do Prof. da Costa não se resumem à edificação da lógica paraconsistente. Ele se dedicou, em geral, aos seguintes domínios: (1) teoria dos números; (2) lógicas não-clássicas, bem como suas aplicações, por exemplo à informática; (3) fundamentos da teoria dos conjuntos e da teoria das categorias; (4) teoria dos modelos (teoria da verdade pragmática, teoria das valorações, etc.); (5) teoria dos reticulados e lógica algébrica; (6) lógica indutiva e probabilidade; (7) teoria da ciência; (8) história da lógica.
Um campo em que o Prof. da Costa realizou pesquisas fundamentais (em colaboração com os lógicos chilenos I. Mikenberg e R. Chuaqui) consiste na teoria da verdade pragmática, que tem se mostrado de tanta relevância para a ciência quanto as lógicas paraconsistentes, especialmente após os seus trabalhos com o filósofo inglês S. French. Uma outra área em que tem recebido destaque nos últimos tempos, em colaboração com Francisco Antônio Dória, reside nos estudos acerca dos fundamentos da física, na qual suas técnicas (por exemplo estendendo os teoremas de incompletude de Gödel de modo a aplicá-los a certas formulações das teorias da física), permitiram responder questões relevantes nessas ciências, como solucionar o chamado problema de Hirsch, sobre se há um processo efetivo para se decidir se um sistema dinâmico é caótico (a resposta é negativa), dar um contra-exemplo à tese de Penrose de que a física clássica não oferece exemplos de fenômenos não computáveis, assim como aos problemas de Arno’l’d, em economia matemática, etc.[15]
Dissemos anteriormente que a superação da lógica clássica ocorrera no árido terreno da matemática, e que esse trabalho era devido a Newton da Costa. Agora que conhecemos um pouco da biografia dessa curiosa personalidade científica, incluindo seus sonhos e frustrações, vejamos o que é a lógica paraconsistente e o sentido atual da relação entre lógica e dialética.
Uma lógica com contradição
Vimos que a lógica clássica, tal como fora sistematizada por Aristóteles, possuía certas limitações intrínsecas associadas aos seus fundamentos. Vimos também que essas limitações não deveriam ser deduzidas da tentativa de aplicá-la indistintamente ao mundo real ou a teorias científicas que não lhe dizem respeito. Faltou, portanto, indicar quais seriam essas limitações e como elas foram percebidas pelos lógicos.
Um caso típico é o dos chamados paradoxos. Considere a seguinte afirmação:
— Esta sentença não é verdadeira.
Bem, se a sentença for mesmo falsa, então ela é verdadeira. Por outro lado, se ela for verdadeira, é falsa. O leitor deve refletir atentamente sobre isso, pois a situação é realmente dramática! Em qualquer uma das interpretações da sentença acima, resulta que ela é falsa se for considerada verdadeira, e verdadeira se for considerada falsa! Ou seja, o verdadeiro e o falso são aqui equivalentes!
Paradoxos como esses são conhecidos há muito tempo, desde a época de Aristóteles. Durante séculos os matemáticos e lógicos debateram-se com esses problemas, tentando criar meios de bani-los do interior da lógica. O fato, porém, é que os paradoxos seguiram causando perplexidade até fins do século XIX, quando um esforço concentrado de grandes pensadores deu origem a um movimento científico que visava sistematizar melhor a lógica e as teorias matemáticas de tal maneira que os paradoxos pudessem ser “contornados”. Mas “contornar” os paradoxos não era o mesmo que acabar com eles. As contradições permaneciam existindo, por mais artifícios que os matemáticos usassem para escondê-las debaixo do tapete. Foi então que surgiram as lógicas não-clássicas, onde alguns paradoxos deixam de sê-lo em função de um relaxamento dos princípios demasiado severos da lógica tradicional.
As lógicas não-clássicas mais conhecidas são as seguintes: as polivalentes, onde uma proposição pode ter mais de um valor-verdade; a lógica intuicionista, que restringe a aplicação da lei do terceiro excluído; e a lógica paraconsistente, que revoga a lei da não-contradição.
Dentre todas elas, a lógica paraconsistente é a única que supera completamente a lógica clássica, no sentido usual dado pelo marxismo para a expressão “superar”. Isto é, a lógica clássica é, de fato, matemática e logicamente, apenas um caso particular das lógicas paraconsistentes. Para entender o sentido dessa expressão “caso particular”, voltando à analogia que fizemos com o caminhão, se a lógica clássica puder ser interpretada como um caminhão, a lógica paraconsistente seria um Antonov 225, um avião que pode carregar alguns caminhões em seu interior.
Inconsistência e trivialidade
Até pouco tempo acreditava-se que todo sistema lógico em que pudéssemos obter uma contradição era obrigatoriamente trivial, isto é, se em dada teoria científica (amparada numa certa lógica) fosse obtida uma contradição, então seria possível obter qualquer coisa dessa teoria, inclusive afirmações inúteis. Um sistema que comportasse em seu interior afirmações contraditórias era dito inconsistente. Havia um conhecido teorema lógico que mostrava que todo sistema inconsistente era obrigatoriamente trivial. Dito de maneira informal, isto significava que onde há contradições pode haver qualquer coisa, tanto coisa útil quanto coisa inútil, ou seja, se derivarmos uma contradição de uma teoria qualquer, poderemos derivar qualquer coisa dela. É mais ou menos evidente que uma teoria que afirma qualquer coisa não pode ter muita utilidade, e também não pode oferecer muitas garantias a respeito do valor de suas afirmações particulares.
Este fato, a trivialidade dos sistemas inconsistentes era, a título de exemplo, o centro da crítica de Karl Popper à dialética. Popper afirmava que a dialética não podia existir como sistema, ou mesmo como método, porque se ela admitia contradições em seu interior, era inconsistente, e, portanto, trivial. Ora, se a dialética era trivial, então todas as teorias que se assentavam nela, como método lógico, também o seriam. Logo, o marxismo seria trivial, ou seja, no marxismo seria possível dizer qualquer coisa, explicar tudo, donde a sua aparente inutilidade.
A lógica paraconsistente acabou com isso. Newton da Costa desenvolveu sistemas lógicos inconsistentes, que admitem contradições, mas que não são triviais, isto é, onde não é possível deduzir qualquer coisa. Isso mostra, em particular, que o argumento usado por Popper contra a dialética era inválido, pois não é verdade que todos os sistemas inconsistentes são triviais.
Mas as implicações epistemológicas e filosóficas decorrentes da “paraconsistência” não terminam aí. Na realidade, a conclusão epistemológica mais significativa é precisamente o fato de que as contradições tenham sido reabilitadas no interior da lógica, pois isso significa uma espécie de renascimento da dialética, porém sob uma forma matemática, científica, e não especulativa tal como aparecia
Esses resultados assombrosos, que marcam época na história da ciência, não são, contudo, fortuitos. Newton da Costa possuía fortes motivações filosóficas, dentre elas a seguinte:
Estabelecer técnicas lógico-formais capazes de permitir uma melhor compreensão das estruturas lógicas subjacentes às concepções dos partidários da dialética, como Heráclito, Hegel, Marx, Engels e Lenin.[16]
Ora, temos aqui um pensador que não ignora a dialética e o marxismo, uma boa razão para que os marxistas não o ignorem. Essas motivações filosóficas não são, contudo, a origem real, técnica, da lógica paraconsistente, pois os sistemas de Newton da Costa surgiram em decorrência da investigação de problemas matemáticos específicos recorrentes na teoria dos conjuntos, como os paradoxos descobertos nesse domínio por Bertrand Russell. Entretanto, a motivação filosófica não é secundária, pois sem Hegel, sem Marx e sem Engels, ninguém teria imaginado a possibilidade de introduzir contradições num sistema lógico e considerar esse fato como positivo.
Com o passar dos anos, porém, Newton da Costa abandonou a pesquisa referente a essas motivações filosóficas inicias. Numa entrevista cedida à Folha de São Paulo[17], chegou mesmo a afirmar que à medida que se tornava mais velho e mais “inteligente”, deixava de lado essas preocupações, caracterizadas implicitamente como bobagens ou tolices. Essa renúncia parece-nos, todavia, mais uma forma de evitar polêmicas ideológicas inúteis com jornalistas e com a comunidade acadêmica do que uma posição sincera a respeito das possibilidades que o futuro reserva para a lógica paraconsistente. Seja como for, seria inútil comparar uma lógica, por mais rica e complexa que seja, com uma concepção de mundo, ou com um sistema filosófico global, como era o Idealismo Absoluto de Hegel. Uma lógica, qualquer que seja, é, antes de tudo, uma ferramenta do conhecimento, mas não deve ser confundida com os próprios conhecimentos ou mesmo com as concepções que temos deles. O mesmo erro de que acusamos os partidários de Aristóteles, o de misturar o conteúdo racional estritamente científico da lógica clássica com a ontologia, com a filosofia de Aristóteles, poderia ser atribuído a nós se passássemos a confundir as lógicas paraconsistentes com noções filosóficas ou epistemológicas, mesmo que supostamente “mais lógicas e mais científicas”, como seria a dialética em oposição a outros sistemas.
Para os marxistas, não se trata de maneira alguma de “endeusar” este ou aquele cientista, esta ou aquela descoberta científica, mas apenas de levá-las em conta para que tenhamos uma visão tão apurada quanto possível do desenvolvimento atual da ciência. Não se trata agora de estudar lógica ou matemática para que nos coloquemos à altura de um Newton da Costa, mas, pelo contrário, de conhecer apenas o essencial desses domínios para que estejamos mais bem preparados para triunfar na missão
José Luís dos Santos
São Paulo, dezembro de 2007
[1] Para quem se interessar em aprender lógica de verdade, há um excelente livro introdutório em português chamado Introdução à Lógica, escrito pelo professor Cezar Mortari, da Universidade Federal de Santa Catarina, instituição que se tornou há pouco tempo o reduto de um seleto grupo de lógicos brasileiros.
[2] A interpretação que damos aqui da lei de identidade é de índole pragmática.
[3] A ontologia é o estudo do ser, um assunto filosófico bastante espinhoso.
[4] Valoração significa estabelecer o valor-verdade de uma proposição, isto é, dizer se a proposição é verdadeira ou falsa.
[5] Essa curiosa interrogação aparece na capa da edição brasileira do livro de George Novack. O leitor há de convir que nenhum progresso científico pode ser realizado se essa afirmação basilar, fundamental, estratégica, for questionada. De nossa parte, declaramo-nos partidários do “sim”, e estamos dispostos a construir uma fração para defender intransigentemente esse ponto de vista contra toda e qualquer forma de revisionismo.
[6] Novack, G.: Introdução à lógica (Edição brasileira, Belém, 1993), p. 17
[7] Disponível em www.marxists.org. As passagens entre colchetes e o destaque são de nossa autoria.
[8] Idem.
[9] É necessário distinguir sempre o modo de exposição ou a organização dos conhecimentos dos conhecimentos propriamente ditos.
[10] Novack, G.: Introdução à lógica (Edição brasileira, Belém, 1993), p. 32
[11] Idem, p. 40
[12] “Em geral, com Hegel termina toda a filosofia; por um lado, porque em seu sistema se resume do modo mais grandioso toda a trajetória filosófica; e, por outro, porque este filósofo nos traça o caminho para sair desse labirinto dos sistemas filosóficos em direção ao conhecimento positivo e real do mundo.” Engels, Ludwig Feuerbach e o fim da filosofia clássica alemã. Disponível em www.marxists.org. (Grifos nossos.)
[13] A esse respeito, seguindo o exemplo de Nahuel Moreno, que não ignorava a epistemologia, vale a pena conferir a opinião de Piaget: “A filosofia [incluindo aqui Hegel ou mesmo o materialismo dialético] teria cem vezes razão se reservasse para si os territórios aonde a ciência não vai, não quer ir, não pode ir no momento. Mas nada a autoriza a crer que seus processos estão guardados in aeternum. E ela não está em condições de provar que seus problemas são por natureza diferentes dos que a razão científica se propõe a abordar. A ciência não visa senão à aparência? Mas, segundo a fórmula bem conhecida, de todos os caminhos que conduzem ao Ser, o parecer talvez seja ainda o mais seguro. Quanto a marcar os limites atuais do saber científico, não é tarefa do próprio pensamento científico? Nenhum filósofo faria, sem dúvida, das ignorâncias e das impotências da ciência uma lista tão longa e tão severa quanto a que um sábio [um cientista sábio] seria capaz de preparar.” Piaget, J.: Sabedoria e Ilusões da Filosofia. Coleção Os Pensadores (Editora Abril, 1983), p. 149. O conteúdo dos colchetes é de nossa autoria.
[14] Transcrição da entrevista cedida ao Centro de Lógica, Epistemologia e História da Ciência da Unicamp. Disponível em http://www.cle.unicamp.br/arquivoshistoricos/av_depoimentos_historal.html
[15] Extraído da apresentação feita pelo professor Décio Krause à edição em livro (de 1993) da tese Sistemas Formais Inconsistentes, publicada pela Editora da UFPR.
[16] Costa, N. C. A. da. Ensaio sobre os fundamentos da lógica (Hucitec, Editora da Universidade de São Paulo, 1980), p. 149
[17] Disponível em
http://almanaque.folha.uol.com.br/entrevista_filosofia_newton_da_costa.htm