segunda-feira, 29 de outubro de 2007

A Sociologia do Capitão Nascimento

A "Sociologia do Capitão Nascimento", nova ideologia policial encomendada pela Secretaria de Segurança Pública do Estado do Rio de Janeiro, repousa em três pressupostos fundamentais:

1) O narcotráfico é a principal causa da violência no Rio;
2) Há uma guerra em curso, no Rio, contra o narcotráfico;
3) Numa guerra, todos os meios são válidos, principalmente a tortura e a execução sumária.

"Tropa de Elite" é uma exposição didático-popular da Sociologia do Capitão Nascimento, cujo objetivo é tornar aceitáveis para as classes médias do país, a massa consumidora que constitui a chamada "opinião pública", os pressupostos 2 e 3.

Tornando-os aceitáveis, as conclusões da Sociologia do Capitão Nascimento parecerão justas e corretas. Quem admitir que a polícia do Rio está em guerra com os traficantes, admitirá também a tortura e a execução sumária como métodos válidos.

Como os brasileiros são, em geral, partidários da política de "Guerra ao Terror" de George Bush, é natural que se sintam inclinados a apoiar a política de "Guerra ao Tráfico na Favela" implementada pelos empregados pobres do governo dos EUA no terceiro mundo.

Quanto à veracidade dos fundamentos dessa nova doutrina policial, percebe-se de imediato o seguinte:

i - O primeiro pressuposto é discutível;
ii - O segundo é falso;
iii - O terceiro é discutível.

É dessa ambigüidade das bases da doutrina, além é claro do apelo dramático obtido com a exposição cinematográfica, que decorre a aceitação passiva dela por parte da opinião pública.

Enunciada sem o filme, sem o apoio incondicional da mídia, a Sociologia do Capitão Nascimento não passa de uma típica asneira proveniente das mentalidades apodrecidas e corruptas que governam o país. Entretanto, com o apoio do Wagner Moura e do Padilha, com o eco da Veja e de milhões de distantes espectadores, que conhecem a suposta "Guerra do Rio de Janeiro" apenas pelo Jornal Nacional, a doutrina adquiriu numerosos seguidores.

Como toda ideologia encomendada pelo Estado, a Sociologia do Capitão Nascimento visa justificar uma política injustificável.

Há muito tempo a situação do Rio saiu do controle. Os traficantes e as milícias privadas (formadas por ex-policias, bandidos e oficiais de carreira) governam dezenas ou mesmo centenas de favelas. O Estado perdeu o controle de porções imensas da capital. Milhões de seres humanos vivem sob o regime despótico e insano do crime organizado. Isso não quer dizer, naturalmente, que os bairros da capital que ainda recebem alguma assistência do Estado não estejam também sob um regime igualmente bestial e despótico. Significa apenas que há dois tipos de poderes no Rio de Janeiro dos nossos dias:

1. O poder dos traficantes e das milícias privadas;
2. O poder do Estado.

Esses dois poderes estão em conflito. Não porque se odeiem mutuamente, mas porque o poder do crime organizado comete muitos excessos. É desagradável mesmo para a burguesia do Rio (que nutre desejos nada secretos de promover uma limpeza étnico-social com o extermínio em massa dos favelados) ver nos noticiários estrangeiros pessoas sendo queimadas vivas em coletivos. Quando esses excessos são cometidos na favela, tudo bem, não tem importância. Quando pessoas são esquartejadas, mutiladas, torturadas ou queimadas vivas na favela, não há problema. A burguesia não está nem aí. Mas quando a notícia sai no Times ou no Le Monde, ela sente uma espécie de mal estar. Não pelas vítimas ou pelas atrocidades em si, mas porque as ações de suas companhias aéreas na bolsa começam a cair. A indústria do turismo sofre em demasia com os excessos praticados pelos narcotraficantes. A morte de um João Hélio ou mesmo a de um pobre como o Jorge Cauã, quando é divulgada na Europa ou nos EUA, causa perdas significativas para os poderosos donos das agências de viagens, redes de hotelaria e turismo.

Mas é claro que o Governador do Estado do Rio de Janeiro e seu Secretário de Segurança Pública não estão nem um pouco preocupados com o mundo das favelas. O Estado não se importa nem um pouco com o crescimento do crime organizado, pois há milhares de fortes acionistas do crime organizado no interior do Estado. Em certo sentido, o Estado é o crime mais bem organizado que existe. Ele mantém a desigualdade social, ele legaliza a expropriação secular dos oprimidos. Ele assegura o funcionamento regular da escravidão assalariada. É o Estado que garante que 100 milhões vivam na pobreza, dos quais 50 milhões na miséria, enquanto os senhores Joseph & Moise Safra, os Andrade Faria, os Jorge Paulo Lemann, os Antônio Ermírio de Moraes, os Bozano-Simonsen, os Santos Diniz, os Hermam Telles, os Seabra, os Steinbruch, e mais alguns outros, detenham fortunas pessoais que alcancem somadas a extraordinária cifra dos 30 bilhões de dólares!

Ora, com todo esse dinheiro, esses senhores desejam aproveitar o Brasil. Eles querem gozar o seu "Paraíso Tropical". Eles querem o Rio de volta para eles. Eles querem os prazeres de Copacabana, Ipanema, Leblon, Zona Sul...

De que adianta possuir uma fortuna estimada em bilhões de dólares e levar um balaço na cabeça em um semáforo, disparado por um molequinho de rua armado com um 38? Não adianta nada. Nem todo o dinheiro do mundo vai reconstituir os pedaços da cabeça da ex-senhora Gerdal, que passeava tranqüilamente no Leblon, em sua Mercedes blindada, quando cometeu o erro de deixar o vidro aberto e seus miolos saíram voando.

A burguesia quer paz. A burguesia quer tranqüilidade. Ela acumulou enormes fortunas com séculos de esforços árduos das classes exploradas. Ela acumulou fabulosas quantias de dinheiro fazendo do Brasil um dos países mais desiguais do mundo. Séculos de terrível exploração, misérias, escravidão, esforços sobre-humanos extraídos das massas trabalhadoras, séculos de parasitismo social, para acabar assim? Com a cabeça despedaçada por um 38?
A burguesia está cansada. Ela cansou disso tudo. Ela não suporta mais as dimensões que a miséria adquiriu. Ela quer o Rio de volta.

E ela não quer que seus sócios do morro, ligados à poderosa indústria mundial do tráfico de armas e entorpecentes, cometa excessos diante da opinião pública. Se for na favela, escondido, tudo bem. Mas na frente das câmeras, não!

Mas como conseguir a paz num regime de fome, penúrias, privações, sofrimentos, angústias, terror, violência? Como conseguir a paz nessas condições? Com passeatas ridículas? Com campanhas pelo desarmamento?

Nesse ponto, a mentalidade do burguês, embotada pelas cifras dos rendimentos de suas aplicações, chega à seguinte conclusão:

"Senta o dedo nessa porra!"

É claro, porém, que o burguês não vai ele próprio botar a mão na massa, lógico que não!

Ele tem seus empregados.

É nessa hora que entram em cena o Governador do Estado, o Secretário de Segurança Pública e a Rede Globo. Eles dizem:

"Estamos em guerra. Caveira! Temos que usar todos os meios disponíveis. Precisamos torturar e matar. Antes disso, vamos preparar o terreno. Vamos fazer um filminho. Cinema para o povão. Um filme bem didático, com bastante narração em off que é pro povão entender, principalmente a classe média, que é burra. Vamos fazer um filminho capaz de desumanizar as pessoas. Vamos fazer um filminho capaz de tornar cada imbecil telespectador do Jornal Nacional um apoiador incondicional de nossos conflitos televisivos como o narcotráfico. Vamos fazer um filme de tal maneira que as pessoas acreditem que é justo matar e torturar. Vamos transformar nossas tropas de extermínio em 'Tropas de Elite'. Seus executores e torturadores virarão heróis. Assim, a classe média que assiste a 'guerra do Rio' pela TV vai achar que estamos fazendo um bom trabalho de combate ao crime. E, principalmente, conseguiremos deixar os turistas estrangeiros mais tranqüilos. Precisamos mostrar a eles que em breve, se conseguirmos controlar esses animais, o Rio se tornará mais seguro. Caveira neles!"

E aí é lógico que sempre tem um Global à disposição. É lógico também que sempre haverá os capitais de uma multinacional como a Miramax à disposição.

Foi assim que eles conseguiram difundir a Sociologia do Capitão Nascimento, que é a versão tupinambá da política de "tolerância zero" nova-iorquina, a versão terceiro-mundista das políticas de repressão contra imigrantes dos países europeus, a versão Made In Rede Globo da guerra contra a pobreza travada nos países imperialistas.

"Tropa de Elite" é essa merda toda.

Mas cuidado.

O filme não é propriamente fascista, pois a classe dominante brasileira não deseja o fascismo.

A classe dominante brasileira está muito satisfeita com o governo Lula. Afinal, "nunca antes nesse país" os banqueiros ganharam tanto dinheiro! "Nunca antes nesse país" os capitais estrangeiros especulativos foram tão bem remunerados! "Nunca antes nesse país" os usineiros puderam contar com um herói tão abnegado! "Nunca antes nesse país" as companhias aéreas tiveram tantos privilégios, podendo até derrubar aviões à vontade! "Nunca antes nesse país" os corruptos foram tão privilegiados, contando com fantásticas absolvições e com a blindagem concedida pelo próprio Presidente da República!

Os pobres favelados do Rio de Janeiro, coadjuvantes involuntários das filmagens da "guerra", perceberão rapidamente a natureza real dessa política. Porque eles perderão ainda muitos Jorge Cauãs, centenas, milhares deles. E para piorar, agora que a execução sumária e a tortura foram legalizadas, essas mortes se tornarão ainda mais dramáticas.

A classe média, por sua vez, a prostituta dessa trágica novela, se tornará cada vez mais favorável ao terror, porque ela gosta de ver cenas de combate, de tortura, de repressão. Na TV é tudo muito bonito. A classe média adora! Ela se sente mais segura quando vê um helicóptero disparando contra bandidos desarmados em fuga. Ela adora isso!

O único problema é que as ações das Tropas da Elite nas favelas vão aumentar ainda mais a violência. Pois os traficantes não são idiotas como o "Baiano". Eles são poderosos capitalistas como o Fernandinho Beira-Mar, que possui uma fortuna estimada em 40 milhões de dólares. E eles não estão dispostos a perder seus negócios por conta dos desejos de "paz" da burguesia ligada ao setor de turismo.

Eis aí em que se resume o conteúdo da "doutrina" do bravo Capitão Nascimento.

Não é incrível que o cretiníssimo jornalista da Veja tenha invocado Aristóteles para defender essa merda de filme?

Zé Luís
São Paulo, 23 de outubro de 2007

-x-x-x-

José Luís dos Santos, 31, é jornalista.


"Fascista, não!"

Está certo. O Padilha e o Wagner Moura têm razão de estar chateados com essa história de serem chamados de fascistas. Isso foi uma grande injustiça. O filme não é fascista. De jeito nenhum. Só quem ignora completamente o que foi o fascismo poderia fazer tal confusão.

O fascismo significa, antes de tudo, uma contra-ofensiva militar das classes dominantes contra os trabalhadores e seus aliados: as nacionalidades, etnias e culturas oprimidas.

A ascensão de Mussolini, Hitler ou Franco significava simplesmente uma reviravolta tática dos setores desfavorecidos do imperialismo europeu visando quebrar a coluna vertebral do proletariado de seus países, preparando assim circunstâncias favoráveis para a deflagração da Segunda Guerra Mundial.

Hitler necessitava subjugar a classe operária alemã, expurgar a tradição socialista do movimento operário mais bem organizado do mundo, difundir o ódio racial, preconceitos étnicos, disseminar o terror, promover o holocausto...

Para quê? Para que a indústria alemã pudesse escoar suas mercadorias para o mundo semicolonial e para os mercados europeus, dominados pelos imperialismos "democráticos": EUA, Inglaterra e França.

Para que a técnica e a cultura mais desenvolvidas da Europa pudessem encontrar expressão no mundo dominado segundo a partilha feita na Primeira Guerra Mundial, Hitler necessitou converter os trabalhadores alemães em uma máquina de guerra.

A dominação econômica dos mercados consumidores e das fontes de matéria-prima "alheios" requeria sua prévia dominação militar. Para isso, era preciso convencer a nação alemã a entrar numa guerra infernal, a sacrificar-se de corpo e alma numa guerra insana, a aceitar sua completa desumanização, a crer em sua superioridade racial, ou em qualquer outro tipo de superioridade (a ideologia racial foi apenas uma variante). Não foi fácil. Custou dez anos de esforços estatais intensivos, propaganda, terror, persuasão. Custou a reintrodução do trabalho escravo e o extermínio de milhões de seres humanos em campos de concentração.

Isso era o fascismo, na sua forma mais decidida e resoluta: o nazismo.

Quando as circunstâncias tornaram-se favoráveis, os capitais bancários e industriais alemães decidiram afogar a Europa no sangue das suas classes trabalhadoras. E conseguiram. E ganharam muito dinheiro com isso, sem dúvida. A Wolkswagen, BMW, Siemens, Basf, Bayer, Bosh, entre outras, testemunham.

Isso era o fascismo.

Coitado do Padilha. É possível que ele tenha alguma coisa a ver com essa história? Claro que não!

Mesmo o fascismo terceiro-mundista, caricatura militar e econômica, naturalmente, do europeu, não poderia ser associado com a temática abordada em "Tropa de Elite". As ditaduras militares latino-americanas visavam frear a onda de revoluções de libertação nacional que abalou o mundo semicolonial do pós-Segunda Guerra, ao mesmo tempo que ofereciam resistência ao ascenso continental urbano favorecido pelo triunfo da revolução socialista em Cuba. É verdade que o BOPE foi instituído pela ditadura. Também é verdade que, naquela época, ele não tinha nada a ver com o suposto "combate ao narcotráfico". Suas funções eram muito menos "nobres". Mas, atualmente, o BOPE tem pouca coisa a ver com os "porões da ditadura".

O filme não é fascista. Tampouco é justo dizer que faça apologia da tortura. Ele simplesmente mostra que a tortura existe, e que ela é sistematicamente usada pelas forças de coerção estatais, isto é, a tortura continua sendo um método sistemático adotado pelas forças policiais no Brasil. Outra coisa que o filme mostra é que, no Brasil, a pena de morte existe. Caveira! Morreu. Já eras. Execução sumária. Tiro na cara. Sem julgamento, sem direitos, sem nada. Pena de morte. Isso existe no Brasil. E foi isso que o filme do Padilha mostrou. No Brasil, a pena de morte e a tortura são métodos sistemáticos e preferenciais usados pelas forças de repressão do Estado.
Mas o Padilha não faz apologia da tortura? Claro que não. O Padilha faz apologia da justiça, isso sim.

Qual a razão do sucesso de "Tropa de Elite"? Muito simples: as pessoas ficam felizes por ver um pouco de justiça, mesmo que seja falsamente retratada. O Capitão Nascimento, do modo como foi retratado, é um justo. E os brasileiros são justos. Os brasileiros adoraram o Capitão Nascimento. O Capitão Nascimento faz justiça num país sem justiça, onde os dirigentes da nação são porcos corruptos, onde todas as instituições do Estado estão podres e corrompidas. O Capitão Nascimento mata e tortura. Mas, aos olhos do povo sofrido, acuado pelas privações, pela fome, pelos indizíveis sofrimentos, isso é justiça. Matar vagabundo, matar traficante. Caveira! Pega ele, Capitão Nascimento!

O trabalhador brasileiro trabalha 44 horas semanais em penosas condições. Ganha salário mínimo. O filho é drogado. A esposa, doméstica. A filha, desempregada. O trabalhador brasileiro sofre. Então, vem o Capitão Nascimento e diz: "A polícia é corrupta. A polícia é sócia do narcotráfico. Não tem solução. Tem que matar. Caveira!"

E o trabalhador brasileiro fica imensamente comovido! Porque, além de tudo, o Capitão Nascimento toma água num copinho americano. E a mulher dele esquenta água para o café numa humilde panelinha. O trabalhador brasileiro tem pena do Capitão Nascimento, porque o Capitão Nascimento também sofre. Ele também é explorado e humilhado no serviço! Ele também passa privações, sofrimentos, angústias. O Capitão Nascimento tem até problema de família, igual ao trabalhador brasileiro!

Aos olhos do povo, o suposto batalhão incorruptível de justiceiros humildes e bem intencionados representou um alívio. Viram? Existem pessoas justas nesse país. Existem pessoas como nós, que fazem das tripas coração. Que dão o sangue e o suor num trabalho honesto. Que são justas. O Capitão Nascimento é um justo, um sofredor. Um brasileiro. Por isso nós gostamos dele. Pega ele, Capitão Nascimento! Pega ele!

Essa é a receita do sucesso. Além, é claro, do preço: só custou R$ 5,00. Para a maioria, oportunidade única de ver um filme assim, em primeira mão, ou, se preferirmos, de mão em mão.

Não se trata de fascismo, de maneira alguma.

Mas de um falso retrato da justiça, encomendado por um Estado corrupto, podre, incapaz.

O Padilha fez o que a Secretaria de Segurança Pública do Rio e a Rede Globo jamais fariam: criou a ilusão de justiça, criou a ilusão de honestidade.

Agora, o povo pobre, humilde e espoliado das favelas do Rio será vítima do terror, dos bárbaros assassinatos, das balas de fuzil perdidas, das torturas, das humilhações; porém, na TV, no Jornal Nacional, os assassinos torturadores serão reverenciados! A opinião pública será favorável ao terror!

Quando o Caveirão, o blindado assassino do BOPE, entrar nas favelas atirando nos miseráveis, nos desvalidos, atirando nos herdeiros da escravidão, a classe média gritará "Caveira!" em seus lares confortáveis.

Além disso, o Estado não tem mais nada a ver com o narcotráfico. Não são os juízes, promotores, deputados, senadores, prefeitos, governadores, delegados os responsáveis pela proliferação do narcotráfico. O Estado não é mais cúmplice da indústria das drogas. A partir de agora, os cúmplices do narcotráfico são... os filhinhos de papai da classe média, que fumam maconha e cheiram cocaína! Bate neles, Capitão Nascimento! Surra eles! Eles financiam o tráfico! As multinacionais, os grandes bancos, os acionistas das grandes indústrias, os sócios da "multinacional do pó" não têm nada a ver com o tráfico! A culpa é dos maconheiros! Pega ele! Caveira nele! Caveira nele, Capitão Nascimento!

Quando, finalmente, as armas do BOPE forem apontadas para a cabeça do trabalhador brasileiro, acuado num bequinho da favela, não adiantará clamar por piedade. "Piedade, Capitão Nascimento! Não mata, por favor, tenho filhos pequenos, sou trabalhador, honesto. Sou preto porque nasci preto, sou pobre porque nasci pobre! Mata, não, Capitão Nascimento! Mata, não!"

Não adiantará.

O Capitão Nascimento é apenas uma marionete numa Tropa da Elite. A Elite mata. A Elite quer matar. A Elite não gosta de "preto". A Elite não gosta de pobre. Pouco importa que sejam trabalhadores ou traficantes. Pouco importa. A Elite quer gozar o seu Paraíso Tropical. A Elite cansou de ser açoitada nos semáforos. A Elite não quer mais ser ameaçada por assaltantes por causa de relógios. A Elite cansou de levar bala na cabeça em seus veículos blindados. A Elite está cansada e horrorizada com a proliferação da miséria e da violência.

Olho, trabalhador brasileiro!

A Tropa da Elite vem aí. E vai pegar você.

Aí vem a tortura, a pena de morte.

Olho, trabalhador brasileiro!

O Capitão Nascimento não existe.

Na vida real, eles vão matar você, não o traficante rico.

Olho, trabalhador brasileiro!


***

José Luís dos Santos
São Paulo, outubro de 2007

PS.: José Luís dos Santos é jornalista desempregado.


Os Ensinamentos do Capitão Nascimento


Esses caras do BOPE e da CORE são realmente muito burros!

Eles não entenderam nada do que o Capitão Nascimento disse!

Em vez de ficar gastando munição na favela, matando vapor e aviãozinho, matando fogueteiro do tráfico, não seria mais racional atingir direto a raiz do problema?

Para cada arma apreendida da mão dos traficantes executados, a PM leva outras três para a favela (o próprio Capitão Nascimento disse isso). Por outro lado, para cada fogueteiro executado, a miséria fornece outros 100 para o contingente dos traficantes.

Então, pra que trocar tiros com os caras? Será possível que um policial de elite não saiba quantos barracos um tiro de fuzil é capaz de varar furando tudo o que aparecer pela frente? Não bastam os 19 mortos na operação do complexo do Alemão, dos quais apenas 9 tinham ligações com o tráfico? Não basta a morte do Jorge Cauã, o menino de 4 anos, brutalmente assassinado na guerra insana travada pela polícia com os traficantes?

Esse pessoal é muito devagar!

O Capitão Nascimento é que tinha razão! Mas infelizmente as pessoas não prestaram muita atenção nas palavras dele... Todos se entusiasmaram com as execuções sumárias e com as torturas e esqueceram de ver o lado racional do Capitão Nascimento.

O Capitão Nascimento ensinou que quem financia o tráfico, ou seja, quem garante a manutenção dos traficantes e de todo o círculo infernal que vai da produção ao consumo das drogas, são os playboys. A culpa é dos playboys! São os mauricinhos e as patricinhas! Esses caras cheiram montanhas de cocaína, fumam toneladas de maconha e, com isso, movimentam os negócios dos traficantes. Não é simples?

De acordo com os ensinamentos do Capitão Nascimento, seria suficiente acabar com o consumo das drogas para acabar com o tráfico! Dessa forma, a "Guerra do Rio de Janeiro" terminaria de uma forma muito menos traumática!

Acontece, porém, que as tropas de elite da vida real cometem um erro básico: elas acreditam que os playboys consomem a cocaína na favela!

O playboy não consome a cocaína na favela, mas em mansões luxuosíssimas, acompanhado, normalmente, de muitos outros playboys, garotas de programa, e traficantes elitizados que não gostam do ambiente da favela. É nessas mansões situadas nos bairros ricos que a poeira rola solta, não na favela. O playboy de verdade, aquele que de uma vez só gasta R$ 10.000,00 em cocaína, não precisa ir à favela. O traficante manda um carro da PM fazer pronta entrega na mansão dele. É o disk-coca: ligou, tá na mão! Na favela o playboy se sente muito pouco à vontade, aquela miséria toda... Credo! O playboy não gosta disso. O playboy gosta de cheirar em suítes luxuosas, bebendo whisky 12 anos, fumando charutos caros, acompanhado de mulheres caras. É assim que o playboy cheira, não na favela. Favela é coisa de pobre, de otário.

Os playboys também apreciam muito as caríssimas casas noturnas do Rio e de São Paulo. Numa única balada eles consomem montes de cocaína, gastam fortunas com ecstasy, fumam maconha aqui e ali, bebem feito condenados. Eles gostam também das "raves", onde há sempre muitos traficantes infiltrados, passando ecstasy e cocaína para a elite rica que gosta de se divertir. Esses caras cheiram. E cheiram pra valer. Um único playboy pode gastar mais de R$ 1.000,00 numa noite só com narcóticos. Obviamente, sempre há um traficante ao lado dele. O playboy é sempre bem servido. Nessas "raves", os narcóticos são consumidos à vontade. É o desbunde da burguesia. Os filhos da elite branca do nosso país cometem toda sorte de transgressões nessas bacanais legalizadas. Há sempre muito dinheiro e uma enorme logística por trás de uma "rave" realizada nos bairros ricos de São Paulo e do Rio.

Mas... coitado do pessoal do BOPE! Eles são muito burros! Procuram os mantenedores do tráfico no lugar errado, na favela! Imaginem só! Quanta ingenuidade! Os financiadores do tráfico não estão na favela. Eles estão no Governo, no Estado, na direção das grandes empresas, na direção dos grandes bancos. Os playboys que financiam o tráfico são empresários, acionistas, banqueiros, proprietários de terras, de imóveis, de empreiteiras. É lá que o BOPE tem que procurar a origem de todos os males. Não na favela. Na favela tem o vapor, o soldado, o avião... Mas esses são os pés-rapados. Não são eles que financiam o tráfico. Quem financia o tráfico é a elite, pois a elite é proprietária das terras onde a maconha é plantada. A elite é proprietária das indústrias que processam a folha da coca. A elite é proprietária dos bancos que fazem a lavagem de dinheiro para os traficantes milionários. E a elite não está na favela. Não adianta promover uma guerra na favela, a elite não mora lá. Quem mora na favela são os miseráveis. Os miseráveis não compram e não vendem armas. Os miseráveis não fazem lavagem de dinheiro. Os miseráveis não sabem subornar prefeitos, deputados, governadores, delegados de polícia, juízes, promotores. Quem faz isso é o dono do banco. Quem faz isso é o proprietário da fábrica de armas. O dono da fábrica de armas diz: "O Comando Vermelho é meu principal cliente. Cedam as armas para ele." E a PM vai lá e entrega as armas para o Comando Vermelho.

Mas o BOPE não mata o dono da fábrica de armas. O BOPE não tortura o acionista da multinacional que faz as transferências e as aplicações internacionais para os traficantes. O BOPE não entra com o Caveirão nas mansões de luxo onde a elite branca consome as drogas. O BOPE nunca torturou uma adolescente loira de olhos azuis filha de um juiz porque ela tinha meio quilo de cocaína em casa.

Nenhum policial do BOPE torturou com asfixia e espancamento, ou com tiros à queima-roupa nos membros inferiores, a estudante universitária Manuela Kirschner do Amaral, filha do ex-Embaixador brasileiro em Londres, Sérgio Amaral, ex-porta-voz do ex-presidente Fernando Henrique Cardoso e ex-Ministro do Desenvolvimento, quando ela foi detida em 2000 por tráfico de entorpecentes. A universitária Manuela Kirschner do Amaral era traficante. Ela foi presa portando nada mais nada menos que 260 pastilhas de ecstasy. Ela traficava nas "raves".

Nenhum policial do BOPE enfiou o Caveirão na mansão dela. Nenhum policial do BOPE enfiou um cabo de vassoura na bunda dela exigindo que ela revelasse suas ligações com os narcotraficantes. Nenhum homem de preto, nenhum caveira, teve a dignidade de torturar devidamente a filha do ex-embaixador e ex-ministro para que ela revelasse de onde vinha o ecstasy e como ele era vendido. Os homens de preto não fizeram nada disso. Sequer foram capazes de enfiar o saco plástico na cabeça dela. Ela não foi espancada até perder os sentidos. Ela não passou a noite inteira com um eletrodo nos órgãos genitais levando descargas de 220 volts...

Que lamentáveis "homens de preto"...

O que aconteceu com a traficante universitária Manuela Kirschner do Amaral?

Foi solta no dia seguinte.

Algumas pessoas certamente gostariam de ver a Manuela Kirschner do Amaral ser torturada. Muitos teriam uma fixação doentia pelo cabo de vassoura.

Infelizmente os "homens de preto" do BOPE não são capazes de fazer essas coisas. Por quê? Porque uma Tropa da Elite não pode atingir a própria Elite. Porque eles são uns covardes. É mentira que eles fazem coisas que "assustam o satanás". É mentira. Eles fazem coisas que assustam os favelados, isso sim. Eles são uns pobres imbecis idiotizados, violentados, humilhados, que descontam todo o seu horror cotidiano e o seu ódio alimentado no interior do batalhão sobre os miseráveis.

Tenho uma dica para os policiais do BOPE:

Entrem com o Caveirão numa boate de luxo da noite do Rio de Janeiro. Espanquem todos os playboys a noite toda. Torturem os playboys. Arranquem confissões deles. Assim, descobriremos do dia para a noite quem são os verdadeiros culpados pela situação em que estamos.

Mas não sejam covardes.

Quando encontrarem a filha de um embaixador, o filho de um juiz, de um procurador, de um governador, não hesitem. Façam valer o lema da corporação! Orgulhem o Batalhão! Sejam dignos e merecedores do nome que levam! Sejam homens e executem eles também! Caveira neles, covardes!

Zé Luís
São Paulo, outubro de 2007

Obs.: Manuela Kirschner do Amaral está em liberdade. Homens de Preto, ainda há tempo. Eu tenho um cabo de vassoura em casa.